
Como lideranças indígenas estão moldando a justiça energética na Amazônia
Fotografias e vídeos : Jenifer Veloso
Quando o povo Kisêdjê, no Território Indígena do Xingu, soube pela primeira vez sobre o programa federal Luz para Todos, viu nele uma oportunidade de trazer energia renovável para sua aldeia sem prejudicar a natureza.
“Acredito em um futuro onde, sim, usamos a tecnologia, mas continuamos vivendo do nosso jeito, sendo indígenas,” disse Winti Suyá, uma liderança do povo Kisêdjê. “Continuamos falando nossa língua, vivendo nossa cultura e protegendo a floresta, os rios, a água, os peixes e os animais que nos sustentam. Manteremos a natureza viva, e isso nos manterá vivos também.”
O Luz para Todos tem como objetivo garantir o acesso universal à energia, inclusive para comunidades isoladas na Amazônia, onde se estima que 1 milhão de pessoas ainda vivam sem eletricidade. O acesso a sistemas limpos e renováveis pode transformar vidas na região — melhorando a saúde e a educação, fortalecendo as economias locais e ampliando as vozes indígenas nas decisões sobre o futuro e sobre a floresta.
Para o povo Kisêdjê da aldeia Khikatxi, o acesso à energia solar significa que alimentos obtidos por meio da caça e da pesca podem ser armazenados com segurança em geladeiras e freezers, e o trabalho artesanal pode continuar durante a noite. Mas, apesar desses avanços, o Luz para Todos inicialmente ficou aquém de seu imenso potencial no Xingu, devido a uma série de problemas na implementação do programa por autoridades federais e empresas contratadas para executar o programa.
A Energisa, maior distribuidora privada de energia do Brasil, é responsável pela implementação do programa na região do Xingu. A equipe da Energisa consultou inicialmente o povo Kisêdjê e prometeu implementar uma mini rede solar que não só forneceria eletricidade, mas também atenderia à alta demanda de energia de várias famílias que vivem em uma única residência.
No entanto, foram instalados painéis solares individuais atrás de cada casa, sem explicação. Isso gerou preocupações imediatas quanto ao risco de incêndios, já que muitas das casas da comunidade são construídas com madeira e folhas de palmeira secas.
“As placas não refletem a nossa realidade,” disse Lewayki Suyá, diretor executivo da associação do povo Kisêdjê. “Precisamos de energia com capacidade maior para atender todos dentro de uma casa.”
Além disso, quando os moradores começaram a usar o novo sistema, descobriram que os equipamentos instalados estavam configurados para 110 volts — em vez do padrão de 220 volts utilizado em todo o Xingu.
Na tentativa de resolver o problema, o povo Kisêdjê foi informado que receberia transformadores em agosto de 2024. No entanto, até agora, a comunidade não recebeu transformadores adequados.
Novas preocupações surgiram quando casas que não possuíam painéis solares começaram a receber contas referentes a três meses de uso de energia elétrica. As faturas foram enviadas sem explicação sobre os valores cobrados ou instruções claras de pagamento. Vários moradores da aldeia falam apenas sua língua nativa, e as contas foram emitidas em português, sem opção de tradução.
“Ninguém nunca veio explicar o custo, quanto seria ou como funcionaria o pagamento,” disse Winti Suyá. “Isso criou um grande problema social. Estamos preocupados que nossos nomes estejam sendo enviados para o Serasa.”
A comunidade também solicitou instalação de sistemas solares no posto de saúde, na escola e na associação comunitária, mas nao conseguiram avançar nesse pedido porque cada sistema precisa estar vinculado ao CPF de uma pessoa física.
Diante dos problemas, as lideranças Kisêdjê contataram o Instituto Socioambiental (ISA), uma organização não governamental que atua com povos indígenas do Xingu há mais de 30 anos.
O ISA e outros membros da Rede Energia & Comunidades (REC) — uma coalizão de organizações da sociedade civil que trabalham por uma transição energética justa e liderada pelas comunidades na Amazônia — começaram a organizar um encontro com lideranças indígenas e autoridades responsáveis pelo programa Luz para Todos.
A REC foi criada em 2019 para garantir que os programas de energia sustentável reflitam as necessidades e os contextos culturais de povos indígenas, quilombolas, extrativistas e demais comunidades rurais. Diversas organizações da REC, incluindo o ISA, são apoiadas pela Fundação Mott.
“Nós, do ISA, acreditamos que criar esses espaços de diálogo pode fortalecer a política e ajudar a garantir que realmente beneficie os povos da Amazônia,” disse Marcelo Martins, engenheiro ambiental. “Porque muitas vezes, eles só sentem os impactos negativos de grandes projetos de infraestrutura que são instalados aqui — como hidrelétricas, rodovias e estradas — mas os benefícios vão para outros lugares, para outras regiões, e não ficam aqui.
“É por isso que é necessário haver justiça e equidade energética quando se trata de acesso à energia e outras políticas públicas.”
A Usina de Belo Monte, uma das maiores hidrelétricas do mundo, é um exemplo emblemático do desequilíbrio entre danos e benefícios que ocorre quando as políticas falham em priorizar as pessoas e o meio ambiente.
Concluída em 2016, a usina está situada na bacia do Rio Xingu, onde vivem cerca de 25 mil indígenas de 40 etnias. A construção deslocou quase 40 mil ribeirinhos, comunidades tradicionais e povos indígenas. Reduziu drasticamente o fluxo de água do rio e exterminou espécies de peixes fundamentais para a alimentação local. As comunidades perderam terras ancestrais, o que contribuiu para o desmatamento e a perda de biodiversidade.
Além disso, mais de dois terços da eletricidade gerada por Belo Monte são transmitidos para fora da Amazônia e enviados para centros urbanos e industriais do Sudeste do Brasil, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Foi com esse contexto histórico que os membros da REC colaboraram para planejar um encontro de cinco dias, realizado em março de 2025, na aldeia Khikatxi, para discutir o Luz para Todos. O encontro criou um espaço aberto para um diálogo significativo sobre como expandir a energia renovável no Xingu de forma que respeite os direitos e a cultura do povo Kisêdjê.
Kuyá Iutxi Suyá segura seu filho.
Fotografia: Jenifer VelosoPlacas solares individuais foram instaladas atrás das casas na aldeia Khikatxi.
Fotografia: Jenifer VelosoWekoi Suyá tira um momento para descansar em sua rede dentro de casa.
Fotografia: Jenifer VelosoAs famílias que vivem na aldeia Khikatxi moram juntas em casas individuais.
Fotografia: Jenifer VelosoO povo Kisêdjê colhe mandioca, uma raiz fundamental para sua alimentação.
Fotografia: Jenifer VelosoMairutá Kayabi faz uma pausa para uma foto enquanto brinca do lado de fora.
Fotografia: Jenifer VelosoAs araras-canindé são uma parte essencial do diverso bioma amazônico.
Fotografia: Jenifer VelosoLewayki Suyá extrai a castanha comestível do caroço espinhoso do fruto do pequi.
Fotografia: Jenifer VelosoO fruto do pequi é uma parte essencial da cultura do povo Kisêdjê.
Fotografia: Jenifer VelosoToni Suyá é o pajé, o líder espiritual do povo Kisêdjê.
Fotografia: Jenifer Veloso1/10
Apesar dos obstáculos, o Luz para Todos continua sendo uma das políticas públicas mais importantes para expandir o acesso à energia em áreas isoladas do Brasil. Ao longo da última década, organizações da sociedade civil — incluindo os membros da REC — têm trabalhado para melhorar a implementação do programa.
A ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), órgão regulador da energia no Brasil, é uma das entidades que colaboram com a REC na busca por soluções. A agência regula e fiscaliza a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica em todo o país, garantindo que as políticas sejam eficazes e justas.
“Uma das coisas mais poderosas que vivenciamos aqui [neste encontro] é a importância de ouvir as pessoas antes de implementar uma política,” disse Camila Bomfim Lopes, assessora da diretoria da ANEEL. “A forma como essas políticas são construídas é muito mais importante do que simplesmente fornecer acesso à energia.”
O encontro de cinco dias resultou na elaboração da Carta dos Povos Indígenas do Xingu sobre o programa Luz para Todos. O documento detalha preocupações, experiências e recomendações para a implementação do programa em territórios indígenas. Representantes da REC, da Energisa, da ANEEL e de outros órgãos governamentais assinaram a carta, comprometendo-se a garantir a participação do povo Kisêdjê no planejamento, na implementação e na manutenção do sistema de energia solar em sua aldeia.
O sucesso do Luz para Todos vai além do acesso à energia. Ele é fundamental para proteger a vida das pessoas que vivem na Amazônia. A expansão do acesso à energia renovável além do uso doméstico ajudará as comunidades a permanecerem em seus territórios, a trabalharem de forma sustentável e a contribuírem com a preservação do bioma amazônico.
“Hoje, nosso território está ameaçado,” disse Lewayki Suyá. “Então, há um risco real de que ele não exista mais no futuro. A gente luta para proteger as florestas, os rios, o nosso território — para que as futuras gerações possam viver em paz no seu território, na sua comunidade, com sua cultura preservada, com seu território demarcado. Essa é uma das lutas que levamos adiante, e nunca vamos parar de lutar.”